Se a gente pergunta pra alguém por que a rivalidade entre o Brasil e a Argentina começou, é possível que a resposta seja “foi por causa do Pelé e do Maradona”. Muita gente associa essa rixa imediatamente ao futebol.
Mas essa rivalidade entre brasileiros e argentinos existe desde muito antes de Maradona e Pelé darem um chute numa bola. Aliás, muito antes de Pelé e Maradona nascerem.
Antes até do próprio Brasil e da Argentina existirem.

De onde veio, então, essa rivalidade tão grande entre Argentina e Brasil? Vamos tentar entender agora, com uma retrospectiva de 8 momentos “tiro, porrada e bomba” (ou “babado, confusão e gritaria”, vai da sua preferência) entre os dois.
Como surgiu a rivalidade entre argentinos e brasileiros? – 8 momentos dignos de novela
Pra quem quer um resumo, dá pra dizer, de forma bem simplificada que nossa rivalidade foi “herdada” (ô herança ruim) de portugueses e espanhóis.
Mas a forma que essa história se desenrolou é tão interessante que só um resumo não é tão proveitoso.
Portugueses e espanhóis basicamente disputavam territórios descobertos aqui no “Novo Mundo”, lembra? O Tratado de Tordesilhas serve bem pra nos lembrar disso: um tratado que, basicamente, definia a partir de uma linha que “essa parte é minha, essa parte é sua, tá?”.

Então temos de um lado os portugueses que colonizaram o Brasil, que já não iam muito com a cara dos espanhóis – e de outro lado, os espanhóis, que colonizaram a Argentina já não indo muito com a cara dos portugueses.
Isso aí já nos ajuda a entender um pouco as origens da rixa da Argentina e Brasil.
Mas ainda não explica o suficiente por que a rivalidade do Brasil e da Argentina foi só se intensificando.
Então vão aqui 8 fatos históricos que podem ter contribuído muito pra aguçar a rivalidade entre os países.

1. A rixa entre o Brasil e a Argentina existe antes mesmo do Uruguai existir – e se não fosse por essa rivalidade, talvez o próprio Uruguai nem existisse
Pra quem não lembra: o Uruguai (que na época nem se chamava assim, então quando você ler “Uruguai” aqui, leia “Província Cisplatina”) já “fez parte” do Brasil. Quer dizer, a história é mais complicada do que isso: o Uruguai “fez parte” do Brasil, depois não fez mais parte, depois fez parte, depois não fez mais…
O que importa aqui é: o movimento separatista uruguaio surgiu com a ajuda de um “empurrãozinho” da Argentina – que no começo desse furdunço também nem se chamava Argentina, então quando você ler “Argentina”, leia “Províncias Unidas do Rio da Prata”. Mas voltando ao assunto…
A Argentina bancou o movimento separatista do Uruguai, e tropas argentinas lutaram ao lado dos uruguaios contra o Brasil e tudo.
“Vai lá, separa do Brasil mesmo“, disse a Argentina no pé do ouvido da então Província Cisplatina.
“E por que a Argentina fez isso? Ela estava preocupada com os sentimentos do Uruguai?”
Não.
Quer dizer, talvez alguém na Argentina estivesse genuinamente preocupado que “puxa vida, o Uruguai precisa declarar sua independência, pobrezinho”, mas não foi isso.
Basicamente a Argentina incitou o separatismo porque ela queria o Uruguai pra ela. Não pro Brasil.

[insira sonoplastia de reviravolta no enredo]
E tirando o poder do Brasil de lá, ficava mais fácil tomar a Província.
Na verdade, toda a história do Uruguai é permeada de uma disputa entre espanhóis e portugueses (olha aí, de novo isso) por todo aquele território, a “Banda Oriental”.
No Tratado de Madrid, por exemplo (que citei na legenda da foto de Tordesilhas lá em cima) o tópico “quem vai ficar com Colônia del Sacramento?” foi um dos principais – e Colônia acabou ficando com os espanhóis, em troca dos Sete Povos das Missiones.
Mas a Província Cisplatina no fim das contas não queria ser da Argentina e nem do Brasil. Queria ser Uruguai. Pronto.
A título de curiosidade, foi nessa campanha de desanexação do Uruguai que surge a figura do General Fructuoso Rivera. Lembrou desse nome? Ele não te é estranho se você já foi pra Montevidéu, porque tem uma avenida enorme (ENORME) com o nome dele na capital.
Pera, eu vou fazer melhor do que escrever “enorme” duas vezes (e uma em caixa alta), vou mostrar no Google Maps:

“E por que deram o nome dele pra uma Avenida tão grande?”
Por vários motivos: primeiro, o cara foi figura fundamental nessa campanha de independência, chamada de campanha dos “Trinta e três orientais” – e grave esse nome, porque também tem uma praça em Montevidéu que chama Treinta y tres orientales, que fica na Avenida 18 de julho.
E por que a Avenida chama 18 de julho? Porque essa foi a data de surgimento da primeira Constituição do país, 2 anos depois – quando Rivera se tornou o primeiro presidente do Uruguai. Alá, a história tá toda nas ruas de Montevidéu.

Mas bom, voltando ao assunto, em 1828, o Uruguai virou Uruguai, depois desse furdunço todo entre o Império do Brasil e a Argentina.
Quer dizer, claro que a coisa não foi simples assim, o conflito se estendeu de 1825 a 1828, quando a Inglaterra então interviu diplomaticamente em uma Convenção que determinou a criação do estado uruguaio.
Vai vendo aí: o Brasil e a Argentina nem conseguiram se entender sozinhos, a ponto da Inglaterra ter que se meter pra falar “vamos parar com a palhaçada, larguem o Uruguai” – até porque a Guerra que se estendia há tanto tempo prejudicava por tabela os negócios da Inglaterra por aqui.
“Tá, volta pro assunto rivalidade Argentina x Brasil agora…”
Nessa convenção, o mediador inglês (Lord Ponsonby) até usou o termo (grave isso:) que o Uruguai ali entre Brasil e Argentina seria “um algodão entre dois cristais“.
“O que raios isso significa?”
Experimenta bater um cristal em outro pra ver o que acontece.
O Uruguai seria então um lindo e formoso algodãozinho protegendo o atrito entre o cristal brasileiro e o cristal argentino. E isso já mostra, de novo, como a rivalidade entre Brasil e Argentina era notada desde aquela época.
Outra curiosidade: uma vez, em uma entrevista, perguntaram pro Mujica se ele se dava melhor com Dilma ou Kichner.
Mujica respondeu “me dou bem com as duas, o Uruguai é um algodão entre dois cristais” e a notícia saiu em vários jornais – agora vem a parte engraçada: – jornais esses que acharam a frase impressionante e inédita – mas agora você já sabe que ela foi dita há muito tempo por Lord Ponsonby, durante aquela Convenção Preliminar de Paz, mas não deram os créditos pra ele e acharam que foi o Mujica que inventou a expressão.

Interessante, né? A gente vai tentar descobrir onde se iniciou a rivalidade entre Brasil e Argentina e de repente tá descobrindo a origem dos nomes de ruas no Uruguai e de frases que saíram no jornal.
2. Outro momento de rixa: anos depois, foi o Brasil que defendeu o Uruguai… da Argentina
Outro motivo pros brasileiros torcerem o nariz pros argentinos tem nome: Juan Manuel José Domingo Ortiz de Rosas.
E que nome grande.
Rosas (vou chamar assim na intimidade porque como você pôde verificar, o nome inteiro dele é enorme) foi um ditador que, basicamente, se pudesse pegava a América do sul toda pra ele: o cara queria a Argentina, o Paraguai, a Bolívia e… o Uruguai.
O Uruguai, cara, logo ele, nosso algodãozinho, que tinha acabado de conseguir a independência. E depois Rosas ainda quis um naco do Rio Grande do Sul também. Sujeito guloso, realmente.
E como combater a fome desse rapaz?
O Brasil declarou ajuda ao Uruguai contra o exército argentino – e aí a Argentina declarou guerra ao Brasil também. Pronto.
Vamos resumir tudo (um resumo porco) em: Argentina perdeu. E temos aí mais um momento de baita rivalidade histórica.
3. E aí teve mais uma guerra… dessa vez a do Paraguai (e um empréstimo nunca pago)
Cara, coitado do Uruguai, sério mesmo. Mal virou país e não teve nem tempo pra respirar.
Continuou sendo disputado, dessa vez internamente (já não bastava a galera de fora querendo tomar ele) por dois grupos: os Blancos e Colorados. Só imagino o Uruguai falando “pára a Terra que eu quero descer”, os caras não deviam aguentar mais.
Vai uma outra curiosidade aqui: o Partido Blanco e o Partido Colorado, que disputavam o poder já nessa época, existem até hoje no Uruguai. São alguns dos partidos mais antigos do planeta.
A disputa na época entre esses dois era intensa, num nível que devastou o país, de tanto conflito armado. Os Colorados fecharam uma aliança com o Brasil, e os Blancos tinham uma aliança com o ditador do Paraguai na época, Solano López.
Mas dessa vez, você deve saber, a Argentina ficou do lado do Brasil e do Uruguai (e daí a guerra também é chamada de “Guerra da Tríplice Aliança”) contra o Paraguai.
O resto da história a gente já sabe, com versões bem diferentes dadas por cada historiador. Se você tiver interesse, o livro “Maldita Guerra” do Doratioto é extremamente rico de informação sobre a guerra do Paraguai. Isso aqui é um blog mais focado em viagem, verdade, mas dá pra viajar lendo o livro dele.
E já que falei em “no fim das contas“: durante essa guerra o Brasil concedeu diversos empréstimos à Argentina e ao Uruguai. E ironicamente, no fim das contas não houve “fim das contas” porque os empréstimos não foram pagos nunca.
E vai ver esse foi mais um motivo pra birra entre Brasil e Argentina. O Brasil pensando “alá, me deu calote”.
Fim da rivalidade?
É de se achar que “ficaram os dois do mesmo lado na guerra contra o Paraguai, então os dois se entenderam depois disso, né?”.
Não.
Rolou mais furdunço depois.
4. “Toca aqui – não, pera, mudei de ideia”
Em síntese bem furreca: O Rosas propôs uma aliança a Pedro II. Pedro II assinou. Mas na hora de ratificar o tratado, rolou basicamente um “pensando melhor, não quero mais não” da parte de Rosas.
Pedro II ficou ofendidíssimo. Algo tipo: como assim você pergunta se eu quero uma aliança contigo, e quando eu falo que quero você diz “eu que não quero mais agora”?
E temos aí mais um motivo pra rixa Brasil X Argentina na conta.
5. Um telegrama safado
Lá pra 1888 dá pra se dizer que a rivalidade entre a Argentina e Brasil vinha sendo superada (dá?), mantendo-se só a rivalidade natural entre os dois maiores países na América do Sul.
Machado de Assis até escreveu pra um jornal carioca da época o seguinte:
“(…) A nação argentina chegou ao ponto em que se acha, próspera, rica, pacífica, naturalmente ambiciosa de progresso e esplendor. Esqueceu a opressão, desaprendeu a caudilhagem; conhece os benefícios da liberdade e da ordem. Vinte anos apenas; digamos vinte e oito, porque a campanha de Mitre foi o primeiro passo dessa marcha vitoriosa. Agora, no dia em que os argentinos celebram a sua festa constitucional, lembro-me daqueles tempos, e comparo-os com estes, quando, em vez de soldados que os vão auxiliar a derrocar uma tirania odiosa, mandamos-lhe uma simples comissão de jornalistas, uma embaixada da opinião à opinião; tão confiados somos de que não há já entre nós melhor campo de combate. Oxalá caminhem sempre o Império e a República, de mãos dadas, prósperos e amigos.”
Bonito, né?
Mas infelizmente alguns incidentes aqui e ali continuaram fazendo a rixa entre o Brasil e a Argentina perdurar.
Um caso famoso é o do “Telegrama 9”. A Argentina interceptou um telegrama que o Brasil enviou pro Chile. Zeballos, ministro do exterior da Argentina na época, distorceu o telegrama e saiu publicando basicamente que “o Brasil falou coisas terríííveis da Argentina no telegrama, vocês nem imaginam”.
O caso foi resolvido por Rio Branco, que decidiu publicar o telegrama na íntegra e decifrado no Diário Oficial, provando que “falamos p*rra nenhuma, tome tenência”.

6. “Por que cê não quer mais? – O retorno”
Mais tarde, outro momento de desentendimento: Perón tentou reviver a ideia de uma aliança ABC, entre Argentina, Brasil e Chile, mas o Brasil não tava muito interessado naquele momento.
Cabe ressaltar que em duas tentativas anteriores, anos antes, quem não estava interessada no ABC era a Argentina. Observa só que parece até casal bolinha pula pula que vai e volta.
Isso, obviamente, gerou um novo afastamento entre Brasil e Argentina.
7. “Pra que cês tão botando essas tropa aí?”
Outro caso foi durante a Segunda Guerra, quando a neutralidade da Argentina e simpatia pelo nazismo nutrida em alguns setores do país acabou fazendo os EUA enxergarem a Argentina como um “mau vizinho” na América. Os EUA apoiaram então o Brasil a militarizar suas fronteiras com a Argentina. A Argentina obviamente ficou ressabiada – até porque ela sempre foi ressabiada com o Brasil, mesmo quando o país não representava ameaça alguma.
8. “Cês querem afogar a gente?”
E falando em ser ressabiada, teve também a questão de Itaipu, essa é famosa. A Argentina achava, basicamente, que a Usina de Itaipu poderia ser uma “arma” contra ela. Que se o Brasil quisesse, poderia inundar a Argentina. O fim da história a gente já conhece.
Conclusão sobre a rivalidade entre o Brasil e a Argentina
O que dá pra concluir disso tudo é que a rivalidade histórica entre os dois países vem de longe, mas bem longe mesmo e atualmente já não faz sentido. Mas continuou se esticando e se transmitindo, por pura birra, a absolutamente tudo: até ao futebol.
Então temos que o futebol, que naturalmente já incita certa rivalidade (ainda mais quando o outro país já se envolveu em guerras contra você), pode ter sido uma transmissão da rixa histórica não muito bem superada e às vezes reforçada por um ou outro incidente contemporâneo. Interessante, né?
Enfim: se você tem alguma birra com a Argentina, pode deixar de lado. Não estamos mais em guerra, temos um algodãozinho querido entre nós, e tanto o algodão quanto o cristal produzem excelentes alfajores e doces de leite pra adoçar ainda mais nossas relações (e nós produzimos pudim, brigadeiro, paçoca e queijo com goiabada, e assim fica tudo muito doce e maravilhoso).
Até o próximo post com mais treta entre países desvendada. Ou não. Eu posso mudar de ideia e falar de receita de pudim.
Atualizando: vim do futuro pra contar que no post novo não falei nem de treta entre países, nem de pudim. Acabei falando de instagram.
Sempre maravilhosos teus posts seja pela informação seja pela forma alegre e envolvente. Eu aqui do Rio Grande do Sul sei muito bem o sentimento por esses lados do Guaíba ao Prata. E um pedido: cuide-se bem, por favor. Um imenso abraço carinhoso.
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Que coisa boa ler esse comentário tão gentil, obrigada! Cuide-se bem você também e um abraço distante e sem corona!
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Eita q ela tb fala de histórias!
Amei todo esse contexto histórico pra entender a rivalidade. =*
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Eba, feliz que você gostou! Brigadaça, Aline! 🙏❤
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Seus posts são muito bons. Você é muito criativa. Amei
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Muito obrigada, Thaís, fico feliz demais de ler isso! 🙏❤ volte sempre por aqui!
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Parabéns pelo post! Aprendi bastante.
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Obrigada pelo comentário, Angelo! Feliz de saber disso!
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Muito bom! Adorei a maneira com que os fatos foram narrados, parabéns.
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Muito obrigada pelo comentário gentil! 🙏
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